Lecionário, o que é e para que serve?

O termo lecionário vem do latim tardio lectionarium e assume-se que seu significado mais assertivo seja uma coleção/seleção de leituras/lições, um termo da mesma família de scriptorium (lugar onde se escreve) e refectorium (lugar onde se faz refeições) e lectorium o lugar onde se lê (sala de leitura).  No entanto, o uso do termo ao longo dos séculos foi sendo apropriado pela cristandade. De modo que hoje, quando falamos em lecionário, estamos a falar de leituras selecionadas das escrituras (1º e 2º testamentos) cujo objetivo é o ensino, o qual se dá ao longo de um ciclo trienal. Desse modo, sugiro a seguinte definição: Leituras selecionadas cujo objetivo é o ensino. Ora, sendo assim, a seleção das partes a serem lidas devem ser eficazes do ponto de vista pedagógico. Mas o que se pretende ensinar? Em se tratando de prática cristã, são as verdades derivadas das Escrituras que se pretende ensinar; mas como? O ano litúrgico é o meio pelo qual as diversas tradições cristãs distribuem as leituras.

Para a tradição romana, em particular, a liturgia do tempo consiste em um múnus exclusivo da Igreja em distribuir todo o mistério do Cristo ressurreto pelo correr do Ano. Este correr do ano é cíclico, como que a afirmar que o Cristo ressurreto é o princípio e fim. Ao mistério do Cristo ressurreto soma-se, em especial, a veneração de Maria. Isto porque o mistério salvífico do Cristo ressurreto não poderia ser dissociada de sua encarnação. A Igreja Romana também celebra durante o ciclo a memória dos Mártires e outros Santos. O tempo litúrgico é também visto por Roma como oportunidade para formação dos fiéis, servindo-se de piedosas práticas corporais e espirituais, da instrução, da oração e das obras de penitência e misericórdia.(§105 do Sacrosanctum Concilium Vaticano II), de maneira que o Domingo do Senhor e festas do Senhor, a Quaresma, e as Festas dos Santos gozam de especial prestígio no Ano Litúrgico. A tradição Anglicana, no entanto, não dá tanta ênfase à exclusividade do múnus e tampouco as tradições anglicanas não conformistas. Todavia, isso não deve ser confundindo com anomia.

Precisamos ter em mente que para além do fim pedagógico há também a intenção de se uniformizar as práticas públicas de fé. A depender dom modo como essa uniformização se dá, há verticalização (imposições litúrgicas). Vez ou outra, a celebração do ano litúrgico ganha forças aqui e acolá, sobretudo entre os cristãos sem identidade histórica, membros de igrejas e movimentos independentes. Credito essa inclinação a uma espécie de compensação psicológica pela ausência de tal identidade. Nesses casos, tem-se a impressão de que tais igrejas e movimentos adotam as leituras (lecionário), bem como a observância do ano litúrgico, como um avatar: crê-se que ao adotar as leituras e observar o ano litúrgico estar-se-ia imbuindo na identidade na unidade com os demais cristãos. Mas como todo avatar, é virtual, não real. A unidade, precisamos entender, dá-se apenas quando a coletividade acorda sobre o ensino que deriva das leituras ao longo do ano litúrgico. Unidade/comunhão não é questão de formalidade, é questão de ensino encarnado em nossas vidas.

Na minha modesta opinião, partindo da premissa de que o primeiro objetivo de um lecionário é de cunho pedagógico, só considero que haja unidade quando alguma formalidade seja causa, efeito e meio de um entendimento comum sobre o significado de tais formalidade. A leitura de um lecionário e a observação de um calendário litúrgico serve para promover a unidade/comunhão à medida que apregoa determinado ensino, não ritos, tampouco formas, pois ritos e formas só têm valor de comunhão se concordamos sobre o ensino que deles derivam. Portanto, a mera observância das leituras pertinentes a cada estação do calendário litúrgico, permita-me a sinceridade, não põe você em comunhão/unidade com alguém. E ainda: suspeito que a mera observância pode ser fruto de fetiche e a rebuscada elaboração de um sucedâneo para quem não suporta a diferença e encontra nesse expediente uma maneira de expressar sua intolerância, travestindo-a com a virtude da busca pela unidade/comunhão, falseando as semelhanças. Estaria eu, portanto, propondo que celebremos as diferenças? Não, e para saber o que penso sobre celebrar as diferenças, leia mais clicando aqui. Portanto, a pergunta, que não quer calar, é: você realmente acha que está em plena comunhão com todos que frequentam o mesmo ato público de fé (culto/missa)?

O quadro que hoje discirno é realidade na qual em nome de uma pseudo unidade/comunhão se está constrangendo pessoas a adotarem algum lecionário e algum calendário litúrgico, ou seja, uma nova versão das imposições de outrora, sob pena de serem consideradas crentes de segunda categoria, menos esclarecidos, menos devotos e piedosos. Leia mais sobre a liturgia clicando aqui. Se você leu, saberá que sou defensor da liturgia que seja inteligível, em outras palavras, didática e eficaz enquanto instrumento de instrução coletiva e pública.

O lecionário - bem como a observância de um calendário litúrgico - é instrumento de ensino e, portanto, serve para ensinar. Creia, o lecionário não é instrumento de união/comunhão e tampouco demonstração disso. Perceba que na história da Igreja, quando se confundiu uma coisa com a outra, os abusos começaram, as imposições litúrgicas (nas suas mais diversas facetas) tiveram início. Não se deixe enganar, não se permita entrar em uma espiral de culpa por não ter tempo de fazer essa ou aquela oração matutina/vespertina/noturna, por não seguir à risca esse ou aquele calendário litúrgico. Não se permita viver, em nome da tradição, em um loop infinito supondo estar agradando a Deus. Lecionário e calendário são meios, não fins. Um lecionário é um meio/instrumento e serve para anunciar Jesus de Nazaré, o Cristo ressurreto. E por favor, lembra: comunhão apenas nEle e por meio dEle; e não, ele não é refém de nenhum lecionário ou calendário para ser experimentado e conhecido ou lembrado.

© Rev. Moacir Gabriel