Por que ter uma liturgia?
O texto a seguir foi originalmente escrito em 18/11/2012
Uma definição inicial
Liturgia – palavra usada para definir “uma estrutura acordada, contendo certos elementos prescritos, tais como orações e formas de confissão ou louvor a serem ditos conjuntamente.” [i] Assim, liturgia é, sobretudo, um ato público e coletivo. Outro aspecto importante da liturgia é o sugerido pelo termo “acordada”; acordar sugere chegar a um acordo por meio de consenso, o que exclui o “acordo” por imposição hierárquica; liturgia, portanto, pode ser acordada, mas jamais imposta. De maneira que a liturgia pode – primeiro – ser um elemento de expressão coletiva da identidade teológica de uma congregação e/ou denominação. Uma vez que a temos como “expressão coletiva da identidade teológica de uma congregação e/ou denominação”, podemos concluir que a liturgia pode ser também – em segundo lugar - um indicador confiável, ainda que não exaustivo, da ortodoxia desta congregação e/ou denominação. A liturgia, então, concede-nos uma boa oportunidade de aferirmos a natureza de tal ortodoxia, se bíblica ou não, se reformada ou carismática, por exemplo.
Uma perspectiva protestante/reformada
A liturgia protestante/reformada deve atender alguns requisitos para ser qualificada como tal. Sem sugerir prioridade , podemos mencionar: o uso da língua vernácula; a expressão da doutrina da justificação pela fé, bem como de todos os outros “Solas”; a administração da Santa Ceia e do batismo de acordo com a ordenança de Cristo; a leitura e exposição da Escritura como centro da liturgia. Outra característica relevante da prática litúrgica protestante/reformada é a não diferenciação entre clero e leigos, por ocasião do culto. Para Martin Butzer (Bucer), tal diferenciação era tida como prática anticristã. Em linhas gerais, vê-se que, dentro de uma perspectiva protestante/reformada, a liturgia deve ser significativa e inteligível para o povo, servir a uma decente ordem e boa disciplina, e, por fim, ser edificante.
Uma perspectiva anglicana
A liturgia anglicana é talvez sua maior expressão teológica, daí deriva a importância dada pelos anglicanos – sejam eles da “alta” ou “baixa” igreja – ao “livro de oração”, como expressão da identidade anglicana. É importante salientar que “os reformadores anglicanos anelaram fornecer formas simples e ordenadas de culto, mas eles também estavam comprometidos com a manutenção do que foi útil no passado.” [ii] Contudo, é certo que “com uma paixão pela relevância contemporânea, é fácil perder os benefícios de alguma continuidade com o passado. Uma geração de anglicanos está emergindo com pouca valorização da nossa herança litúrgica e do potencial de reuniões da igreja, cuidadosamente planejadas e teologicamente deliberadas.” [iii]
Respondendo a pergunta
Enquanto protestante/reformado, acredito que devemos ter liturgia; a liturgia, ao contrário do que alguns separatistas ingleses sugeriram no passado, é sim parte integrante do discurso protestante/reformado. Enquanto anglicano – ainda que sem o reconhecimento por parte dos da então chamada “alta” igreja – estou ainda mais certo da relevância da liturgia, principalmente no que tange à construção da identidade anglicana. Assim, nomeando o que julgo as principais razões em favor de se ter uma liturgia, diria: A liturgia tem valor educativo e pastoral. Lembremos que “cada aspecto do que fazemos quando nos reunimos deve contribuir para o crescimento e amadurecimento da congregação: orações e louvores, testemunhos e confissões, além da atividade central da leitura e exposição das Escrituras. A sequência é importante, bem como o seu conteúdo.” [iv] A prática litúrgica também coopera com a manutenção de uma doutrina ortodoxa por meio de orações e cânticos piedosos. Há, no entanto, quem defenda que piedade genuína só existe por meio de orações espontâneas, mas a verdade é que espontaneidade não é garantia de corações contritos. Ademais, se por um lado a historia da igreja nos mostra que a imposição da liturgia foi instrumento de opressão, a mesma história da igreja nos mostra que a excessiva subjetividade pode também configurar desordem no culto público, e, por fim, tornar o mesmo ininteligível ao povo. E mesmo John Owen, citado tão “orgulhosamente” por seguidores dos separatistas ingleses, admite em sua obra, A Discourse Concerning Liturgies, and their Imposition, que seu discurso não é contra a liturgia, mas apenas contra “sua imposição e necessidade de observância pela força de tal imposição” [v] Concluo então que a liturgia é boa e é para o culto o que a organização eclesiástica é para toda a igreja, a saber, o hardware que permite rodar o software. O “estrelato” do vigor dos músculos se deve muito ao papel coadjuvante do esqueleto; trata-se, portanto, de se entender bem os papéis e não de abolir um ou outro. A espontaneidade pode e deve estar presente no culto público, e creio, sinceramente, que a liturgia serviu, serve e servirá muito bem ao propósito de traduzir a subjetividade de todos para a edificação de todos.
Para saber mais, recomendo:
Better Gatherings Website
The Ecclesiastical Offices in the Thought of Martin Bucer
Studies in the Book of Common Prayer
Martin Bucer: A South-German reformer in an English Reformation
A Review of the Book of Common Prayer
Rev. Moacir Gabriel
[i] Tradução livre do original (an agreed structure, containing certain prescribed elements, such as prayers and forms of confession or praise to be said together.) Fonte: © 2009 by The Archbishop of Sydney’s Liturgical Panel. Used by Permission.
[ii] Tradução livre do orignal (The Anglican Reformers wanted to provide simple, uncluttered forms of service, but they were also concerned to retain what was helpful from the past.) Fonte: © 2009 by The Archbishop of Sydney’s Liturgical Panel. Used by Permission.
[iii] Tradução livre do original (With a passion for contemporary relevance, it’s easy to lose the benefits of some continuity with the past. A generation of Anglicans is emerging with little appreciation of our liturgical inheritance and the potential for carefully planned and theologically-deliberate church gatherings.) Fonte: © 2009 by The Archbishop of Sydney’s Liturgical Panel. Used by Permission.
[iv] Tradução livre do original ( Every aspect of what we do when we gather together should contribute to the growth and maturation of the congregation: prayers and praises, testimonies and confessions, in addition to the central activity of reading and expounding Scripture. The sequence is important, as well as the contents.) Fonte: © 2009 by The Archbishop of Sydney’s Liturgical Panel. Used by Permission.
[v] Tradução livre do original (It is only about its imposition, and the necessity of its observance by virtue of that imposition, that we discourse.) Fonte: http://www.ccel.org/ccel/owen/liturgies.toc.html